quarta-feira, 27 de agosto de 2008

O olho

Ora, não percebeis que com os olhos alcançais toda a beleza do mundo?
O olho é o senhor da astronomia e o autor da cosmografia; ele desvenda e corrige toda a arte da humanidade; conduz os homens as partes mais distantes do mundo; é o príncipe da matemática, e as ciências que o têm por fundamento são perfeitamente corretas.
O olho mede a distância e o tamanho das estrelas; encontra os elementos e suas localizações; ele... deu origem a arquitetura, a perspectiva, e a divina arte da pintura.
...Que povos, que línguas poderão descrever completamente sua função!
O olho é a janela do corpo humano pela qual ele abre os caminhos e se deleita com a beleza do mundo.
LEONARDO DA VINCI 1452-1519

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Aprender a pensar é descobrir o olhar

A diferença entre ver e olhar é tanto uma distinção semântica que se torna importante em nossos sofisticados jogos de linguagem tomados da tarefa de compreender a condição humana – e, nela, especialmente as artes –, quanto um lugar comum de nossa experiência.
Basta pensar um pouco e a diferença das palavras, uma diferença de significantes, pode revelar uma diferença em nossos gestos, ações e comportamentos.
Nossa cultura visual é vasta e rica, entretanto, estamos submetidos a um mundo de imagens que muitas vezes não entendemos e, por isso, podemos dizer que vemos e não vemos, olhamos e não olhamos.
O tema ver-olhar – antigo como a filosofia e a arte – torna- se cada vez mais fundamental no mundo das artes e estas o território por excelência de seu exercício.
Mas se as artes nos ensinam a ver – olhar, é porque nos possibilitam camuflagens e ocultamentos.
Só podemos ver quando aprendemos que algo não está à mostra e podemos sabê-lo.
Portanto, para ver olhar, é preciso pensar.
Ver está implicado ao sentido físico da visão.
Costumamos, todavia, usar a expressão olhar para afirmar uma outra complexidade do ver. Quando chamo alguém para olhar algo espero dele uma atenção estética, demorada e contemplativa, enquanto ao esperar que alguém veja algo, a expectativa se dirige à visualização, ainda que curiosa, sem que se espere dele o aspecto contemplativo.
Ver é reto, olhar é sinuoso.
Ver é sintético, olhar é analítico.
Ver é imediato, olhar é mediado.
A imediaticidade do ver torna-o um evento objetivo.
Vê-se um fantasma, mas não se olha um fantasma.
Vemos televisão, enquanto olhamos uma paisagem, uma pintura.
A lentidão é do olhar, a rapidez é própria ao ver.
O olhar é feito de mediações próprias à temporalidade.
Ele sempre se dá no tempo, mesmo que nos remeta a um além do tempo.
Ver, todavia, não nos dá a medida de nenhuma temporalidade, tal o modo instantâneo com que o realizamos.
Ver não nos faz pensar, ver nos choca ou nem sequer nos atinge.
As mediações do olhar, por sua vez, colocam-no no registro do corpo: no olhar – ao olhar - vejo algo, mas já vitimado por tudo o que atrapalha minha atenção retirando-a da espécie sintética do ver e registrando- a num gesto analítico que me faz passear por entre estilhaços e fragmentos a compor – em algum momento – um todo.
O olhar mostra que não é fácil ver e que é preciso ver, ainda que pareça impossível, pois no olhar o objeto visto aparece em seus estilhaços de ser e só com muito custo é que se recupera para ele a síntese que nos possibilita reconstruir o objeto.
É como se depois de ver fosse necessário olhar, para então, novamente ver.
Há, assim, uma dinâmica, um movimento - podemos dizer - um ritmo em um processo de olhar-ver.
Ver e olhar se complementam, são dois movimentos do mesmo gesto que envolve sensibilidade e atenção.
O olhar diz-nos que não temos o objeto e, todavia, nos dispõe no esforço de reconstituí-lo.
O olhar nos faz perder o objeto que visto parecia capturado.
Para que reconstituí-lo?
Para realmente captura-lo.
Mas essa captura que se dá no olhar é dialética: perder e reencontrar são os momentos tensos no jogo da visão.
Há, entretanto, ainda outro motivo para buscar reconstruir o objeto do olhar: para não perder além do objeto, eu mesmo, que nasço, como sujeito, do objeto que contemplo – construo enquanto contemplo.
Olhar é também uma questão de sobrevivência.
Ver, por sua vez, nos liberta de saber e pode nos libertar de ser.
Se o olhar precisa do pensamento e ver abdica dele, podemos dizer que o sujeito que olha existe, enquanto que o sujeito que vê, não necessariamente existe.
Penso, logo existo: olho, logo existo.
Eis uma formulação para nosso problema.
Mas se não existo pelo ver, não estou implicado por ele nem à vida, nem à morte.
Ver nos distancia da morte, olhar nos relaciona a ela.
O saber que advém do olhar é sempre uma informação sobre a morte.
A morte é a imagem.
A imagem é, antes, a morte.
Ver não me diz nada sobre a morte, é apenas um primeiro momento.
Ver é um nascimento, é primeiro.
O olhar é a ruminação do ver: sua experiência alongada no tempo e no espaço e que, por isso, nos instaura em outra consistência de ser.
Por isso, nossa cultura hipervisual dirige-se ao avanço das tecnologias do ver, mas não do olhar. É natural que venhamos a desenvolver uma relação de mercadoria com os objetos visualizáveis e visíveis.
O olhar implica, de sua parte, o invisível do objeto: a coisa.
Ele nos lança na experiência metafísica.
Desarvoranos a perspectiva, perturba-nos.
Por isso o evitamos.
Todavia, ainda que a mediação implicada no olhar faça dele um acontecimento esparso, pois o olhar exige que se passeie na imagem e esse passear na imagem traça a correspondência ao que não é visto, é o olhar que nos devolve ao objeto – mas não nos devolve o objeto - não sem antes dar-nos sua presença angustiada.
O olhar está, em se tratando do uso filosófico do conceito, ligado à contemplação, termo que usamos para traduzir a expressão Theorein, o ato do pensamento de teor contemplativo, ou seja, o pensar que se dá no gesto primeiro da atenção às coisas até a visão das idéias tal como se vê na filosofia platônica.
Paul Valéry disse que uma obra de arte deveria nos ensinar que não vimos aquilo que vemos. Que ver é não ver.
Dirá Lacan: ver é perder.
Perder algo do objeto, algo do que contemplamos, por que jamais podemos contemplar o todo.
O que se mostra só se mostra por que não o vemos.
Neste processo está implicado o que podemos chamar o silêncio da visão: abrimo-nos à experiência do olhar no momento em que o objeto nos impede de ver.
Uma obra de arte não nos deixa ver.
Ela nos faz pensar.
Então, olhamos para ela e vemos.
Márcia Tiburi
Artigo originalmente publicado pelo Jornal do Margs, edição 103 (setembro/outubro).http://www.artenaescola.org.br/pesquise_artigos

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

A Biblioteca de Babel

..." A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, cuja circunferência é inacessível."...
..." em alguma estante de algum hexágono (racionaram os homens) deve existir um livro que seja a cifrae o compêndio perfeito de todos os demais: algum bibliotecário o consultou e é análogo a um deus. Na linguagem desta zona persistem ainda vestígios do culto desse funcionário remoto. Muitos peregrinaram em busca d'Ele. Durante um século trilharam em vão os mais diversos rumos. Como localizar o venerado hexágono secreto que o hospedava? Alguém propôs um método regressivo: para localizar o livro A, consultar previamente um livro B, que indique o lugar de A; para localizar o livro B, consultar previamente um livro C, e assim até o infinito...As aventuras dessas, prodigalizei e consumi mes anos. Não me parece inverossímil que em alguma divisão do universo haja um livro total ( Repito-o: basta que um livro seja possível para que exista. Somente está excluído o impossível. Por exemplo: nenhum livro é ao mesmo tempo uma escada, ainda que, sem dúvida, haja livros que discutam e neguem e demostrem essa possibilidade e outros cuja estrutura corresponde à de uma escada) , rogo aos deuses ignorados que um homem - um só, ainda que seja há mil anos! - o tenha examinado e lido. Se a honra e a sabedoria e a felicidade não são para mim, que sejam para outros. Que o céu exista, embora meu lugar seja o inferno. Que padeça eu de ultraje e aniquilação, mas que num instante, num ser, Tua enorme Biblioteca se justifique.
Asseguram os ímpios que o disparate é normal na Biblioteca e que o razoável ( e mesmo a humilde e pura coerência) é quase milagrosa exceção. Falam (eu o sei) de " a Biblioteca febril, cujos fortuitos volumes correm o incessante risco de transformar-se em outros e que tudo afirmam, negam e confundem como uma divindade que delira". Essas palavras, que não apenas denunciam a desordem mas que também a exemplificam, provam, evidentemente, seu gosto péssimo e sua desesperada ignorância. Com efeito, a Biblioteca inclui todas asa estruturas verbais, todas as variantes que permitem os vinte e cinco símbolos ortográficos, porém não um só disprate absoluto. Inútil observar que o melhor volume dos muitos hexágonos que administro intitula-se "Trono penteado", e outro "A Cãibra de gesso" e outro "Axaxás mlö. Essas proposições, à primeira vista incoerentes, sem dúvida são passíveis de uma justificação criptográfica ou alegórica; essa justificação é verbal e, ex hypothesi, já figura na Biblioteca. Não posso combinar certos caracteres dhcmrlchtdj que a divina Biblioteca não tenha previsto e que em algumas de sua língua secretanão contenham um terrível sentido. NInguém pode articular uma sílaba que não esteja cheia de ternuras e temores; que não seja em uma dessaslinguagens o nome poderoso de um deus.Falar é incorrer em tautologias..."
..." Ouso insinuar esta solução do antigo problema: a Biblioteca é limitda e periódica. Se um eterno viajor a atravessasse em qualquer direção, comprovariaao fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, reiterada, seria uma ordem:a Ordem).
Minha solidão alegra-se com essa elegante esperança."
"Ficções" de Jorge Luís Borges
conto: A Biblioteca de Babel

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Percepção

Perceber é conhece, através do sentidos, objetos e situações.
O ato implica, como condição necessária, a proximidade do objeto no espaço e no tempo, bem como a possibilidade de se lhe ter aceso direto ou imediato. Objetos distante no tempo não podem ser percebidos. Podem ser evocados ou imaginados. Podem se, ainda, pensados.
De qualquer modo fica excluída a possibilidade de serem percebidos. Também não podem ser percebido objetos distantes no espaço quando ultrapassados os limites operacionais dos órgãos receptores ou quando obstruídos por barreiras. A distância no espaço, tanto quanto a inacessibilidade direta ou indireta, exclui o ato perceptual. Fica, em tais circunstâncias, aberta, apenas, a possibilidade de serem pensados ou imaginados.
O ato de perceber ainda pode caracterizar-se pela limitação informativa. Percebe-se em função de uma perspectiva. A possibilidade de apreender a totalidade do objeto apenas ocorre na imaginação, que, por outro lado, constitui forma de organização da consciência inteiramente protegida contra o erro*.
A percepção, é, assim, forma restrita de captação de conhecimento.
A possibilidade de maior enriquecimento informativo terá que ser atingida por uma multiplicação de processos perceptuais, ou através dos atos do pensamento.
Nos processos perceptivos a apreensão dos objetos não se subordina a decisões voluntárias, como ocorre nos processos imaginativos**. Complementa-se a sua caracterização quando se recorda que nela os objetos são assimilados em função de um contexto ou sistema de referência, do qual retiram algumas de suas propriedades, pois que a que se revelam não podem ser consideradas inerentemente suas.
A percepção só se cumpre através sentidos implicando nova possibilidade de caracterizar-se e de distinguir-se das atividades do pensamento.
* Sartre, J.P. - " L'Imaginaire"
** Jaspers, K. - "Psicopatología General"

quarta-feira, 23 de julho de 2008

O Olhar

A percepção de imagens não demanda aprendizado, livres dos códigos da linguagem escrita, a apreensão da imagem é rápida, emocional e, em consequência, memorizável com maior facilidade.

" Ver é alojar. Cortar a lógica linear das palavras, escapar dos corredores da sintaxe, e abraçar de um golpe só, toda a vida anterior. Maravilhoso curto-circuito: a velocidade mais a infância. Justapõe sem hierarquizar, sem seguir a linha ou virar a página."

"Vie et Mort de I'mage" - Regys Debray
Não conseguimos ler textos em outras línguas, mas podemos interpretar imagens de qualquer procedência.
Aqui começo a registrar os meus olhares na diversidade dessa vida tão repleta de maravilhas e surpresas!

Olhos nos olhos

"Saiu da caverna de Platão
e passou a Galáxia de Guttemberg,
à direita, uma via longa conduz à videosfera,
onde estamos nos perdendo.
Venha, é percurso breve,
esclarecedor,
a seguir só com os olhos."

Mario Kuperman